Quase 32 anos depois, o Ônibus ainda circula nas memórias das/os tripulantes
Texto e fotos de Luiz Humberto Pereira



Campus da UFRJ, bairro da Praia Vermelha, na Zona Sul carioca, idos de maio de 1984. Um belo dia, apareceu num dos corredores da Escola de Comunicação – carinhosamente conhecida como Eco – um cartaz convidando para o Enecom. A oitava edição do Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação se realizaria em julho, na cidade de Fortaleza. Quem colou aquele inocente pedaço de papel na parede certamente não tinha ideia do efeito que aquilo iria provocar. O convite levaria um grupo de universitários a encarar quase seis mil quilômetros de estradas, numa atribulada viagem de ida e volta entre o Rio de Janeiro e a capital cearense. O mais inusitado é que a longa travessia rodoviária foi feita a bordo de dois ônibus urbanos Volvo B58, com carroceria Ciferal modelo Padron Briza – na época, esses modelos ficaram conhecidos como Volvo Padron e tornaram-se uma referência no transporte público carioca.

Em maio, a ressaca das Diretas Já! ainda dava um ar meio modorrento à normalmente agitada Escola de Comunicação da UFRJ. A Eco sempre reuniu uma "fauna" bastante exótica e heterogênea, que juntava riquinhos da Zona Sul a periféricos da Zona Oeste, misturados com gente vinda das diversas classes sociais e de todos os cantos da cidade. E ainda incluía muitos estudantes de outros estados – sem falar nos diversos bolsistas latino-americanos, que davam um toque cosmopolita ao ambiente. Tal diversidade estimulava as trocas de experiências, que geravam uma criatividade muitas vezes frenética e desenfreada. Cenas bizarras ou surreais normalmente eram encaradas com certa naturalidade. Afinal, o belo local onde até hoje funciona a Eco tem história. No Século XIX, o imponente prédio centenário foi sede do Hospício Pedro II, depois batizado de Hospício Nacional de Alienados. Mantendo o 'clima', lá ainda estão, como vizinhos ao campus da Praia Vermelha, o Instituto de Psiquiatria da UFRJ e o Instituto Philippe Pinel. Ou seja, loucuras fazem parte daquele ambiente. Portanto, maluco era coisa fácil de encontrar na Eco em 1984.

Em termos de política estudantil, a maioria dos alunos – se não era maioria, pelo menos era a parte mais barulhenta – rejeitava a ideia de organizar um centro acadêmico convencional. Esse grupo mais unido e agitado, conhecido na Eco como "A Panelinha", defendia a autogestão como forma de se fazer representar. Em meio à anarquia local cotidiana, a notícia do Enecom de Fortaleza se alastrou rápido. Logo alguém mais pragmático sugeriu que um grupo de estudantes procurasse o governo estadual – desde 1983, o governador do Rio de Janeiro era Leonel Brizola, um dos anistiados de 1979, líder de uma corrente política que ele mesmo chamava de "socialismo moreno". Seu vice era outro ex-exilado, Darcy Ribeiro, antropólogo e escritor bastante ligado à Educação e às causas estudantis. A proposta era fazer um requerimento ao Governo do Rio de Janeiro para que cedesse um ônibus para levar um seleto grupo de alunos da Eco – "A Panelinha", é claro – até o Enecom de Fortaleza. No ano anterior, havia sido feita solicitação semelhante para um encontro latino-americano de estudantes de Comunicação em Florianópolis – e um confortável ônibus rodoviário foi cedido pelo Governo Brizola. Com tal retrospecto, conseguir um novo ônibus para ir a Fortaleza parecia uma barbada.


Os alunos da Eco que foram até o Palácio Guanabara, a sede do governo estadual, voltaram de lá com a grande notícia: o ônibus para o Enecom cearense estava garantido. A novidade causou uma euforia coletiva. Listas começaram a ser feitas com os candidatos à viagem. Depois, alunos da UERJ, UFF e PUC souberam da história e fizeram a mesma solicitação de transporte. Por isso, dessa vez seriam liberados dois ônibus – um para a Eco, outro para as demais faculdades. Até que chegou finalmente o dia marcado para pegar a estrada. Era uma ensolarada sexta-feira no inverno carioca e a área em frente à Eco estava lotada de mochileiros – muitos com barracas de camping, já que o Enecom não previa alojamentos. Em meio àquela balbúrdia, o primeiro Volvo Padron cruzou o portão do campus, seguido de um segundo, absolutamente idêntico. Ambos pintados de branco com faixas horizontais vermelhas e azuis e as logomarcas da CTC-RJ, a estatal fluminense de transportes coletivos. Aquele modelo urbano era conhecido pelos cariocas como 'Quase Mil', pois foi adotado inicialmente na linha 999 – que ligava o bairro de Charitas, em Niterói, ao Castelo, na região central carioca. Quando os dois ônibus pararam em frente à faculdade, houve um instante de silêncio, seguido de gritos, risadas e exclamações de incredulidade. Teria mesmo o Governo do estado enviado dois ônibus urbanos para levar e trazer cerca de 90 estudantes em uma viagem rodoviária de quase 6 mil quilômetros?


Apesar do inusitado da situação, era a realidade. Pelo menos os vistosos coletivos eram novinhos em folha. Os bancos azuis, sem cintos de segurança, eram revestidos por uma fina camada de espuma. As janelas eram bem amplas, mas sem cortinas. E, se ainda restasse alguma dúvida, lá estavam as indefectíveis barras metálicas no alto do corredor, onde os passageiros dos ônibus urbanos que viajam em pé se seguram. Não havia roleta, mas o assento do trocador virado para o corredor indicava onde ela seria futuramente instalada. Cada coletivo vinha com dois motoristas e um estepe dentro, ocupando boa parte do piso da parte traseira. Prudentemente, os motoristas portavam uma pomposa carta com vários brasões do Governo do Rio de Janeiro, muitos carimbos e assinaturas. Era uma espécie de 'salvo conduto', explicando que aqueles alunos iriam representar o povo fluminense em um importante congresso estudantil no Ceará e solicitando que as autoridades rodoviárias facilitassem a excursão do grupo.

Nenhum daqueles universitários tinha ideia que três meses depois, em outubro, os Volvo Padron marcariam época no Rio de Janeiro ao inaugurarem as novas linhas expressas urbanas, que saíam de São Cristóvão e chegavam à Zona Sul carioca através do Túnel Rebouças. Encurtavam tanto o tempo da viagem que estimularam os moradores dos subúrbios a frequentarem a praia de Ipanema. Algo que causou certo estranhamento a alguns ipanemenses – mas isso já é outra história. E algumas pessoas juram até hoje que aquela viagem ao Ceará foi uma espécie de prova de fogo do governo fluminense para os novos ônibus da Volvo, antes da criação das linhas expressas via Rebouças. Se foi, parece que foram aprovados, pois logo acabaram virando figurinhas fáceis na cidade. Mas certamente ninguém da marca sueca – pelo menos até agora – ficou sabendo dessa inverossímil viagem teste.

Passado o susto inicial com o fato de ter de encarar em ônibus urbanos um trajeto tão longo – a previsão inicial era de 45 horas de ida e outras 45 de volta –, o jeito era embarcar. E a viagem aconteceu – dá para adiantar que, felizmente, não ocorreram 'baixas' e sobreviveram todos. O certo é que, pela quantidade de histórias inacreditáveis que se conta sobre o assunto até hoje, essa bus trip Rio/Fortaleza/Rio ganhou ares de delírio coletivo – com todos os duplos sentidos possíveis. Por isso, não seria coerente tentar contar como foi aquilo sozinho. Era fundamental convidar quem estava a bordo para puxar pelas reminiscências e lembrar alguns episódios daquela saga ocorrida há mais de três décadas.

Nesse verdadeiro mosaico de memórias, uma das poucas que permanece indelével para todos é a do Volvo Padron, sempre no embalo da hipnótica música tema da viagem. Era uma espécie de mantra, que se repetia de forma contínua e interminável. Consistia em um longo "ó, ó, ó", cantado em um coral quase gospel, seguido do refrão, que era também a única letra da canção, gritado em uníssono: "A bordo do Volvo Padrão!" – assim mesmo, com o Padron devidamente aportuguesado.


Depois dessa nem tão breve introdução, um pouco do que foi essa verdadeira odisseia será relatado através de depoimentos de quem embarcou nela. Na época universitários, hoje estão todos na faixa dos 50 anos. Muitos agora têm filhos da mesma idade daqueles jovens destemidos que, em julho de 1984, subiram euforicamente os degraus do Volvo Padron no Rio de Janeiro, rumo a Fortaleza.








"A epopeia do Enecom no Volvo Padron foi algo que marcou minha vida como o que houve de mais próximo de viver um sonho imprevisto na vida real. Os três dias no ônibus até Fortaleza foram uma maneira de conhecer o Brasil dentro de uma espécie de nave. Aquele ônibus voou pelo sertão numa marcha incerta, entre noites estreladas na imensidão do universo profundo. Lá dentro, bebia-se, fumava-se, amava-se, fazia-se música (até uma em homenagem ao tal do Volvo, divorciado da marca, tornado humano). Poderia falar do que se seguiria à jornada que nos levou ao Ceará, do amigo virgem que perdeu a pureza com a grande musa da galera, da minha primeira experiência em dormir numa barraca ao relento num dos pátios da faculdade cearense, ou da nossa indolência, nossa atitude militante de não assistir a uma só palestra do grande simpósio e de conhecer só a vida dali, da gente, dos bandejões, dos baiões de dois e de tudo o mais. Do retorno, mais três dias no Volvo Padron, nada sei, pois estava já coroado do sentimento do mundo. E acho que voltei numa nuvem, inebriado pela vida." – Arnaldo Bloch, jornalista, escritor, editor e colunista do jornal carioca “O Globo”

"Minha mãe estava griladíssima com essa viagem da filhinha de 18 anos com os colegas de faculdade, de ônibus, para as longínquas terras cearenses. Depois de muito choro e ranger de dentes, ela acabou cedendo. Quando chegamos à Eco, já tinha uma muvucada de gente tentando entrar nos ônibus, aquela zona toda. Entre vários tipos exóticos, se destacava na multidão o nosso querido e saudoso Bussunda, sempre naquele modelito básico – bermuda abaixo da barriga saliente, sem camisa, cabelos compridos ao vento. Minha mãe me segurou pelo braço e vaticinou: 'com essa gente você não vai!'. 'Como assim, são meus amigos', argumentei, fazendo cara de choro. Aí um monte de gente começou a gritar que eu tinha que entrar logo, senão iria perder o ônibus. Naquela confusão, aproveitei uma distração da mamãe e pulei pra dentro, pela janela mesmo. Ela, que quase teve uma síncope, tentou me agarrar pelas pernas e pensou que era a ultima vez que me via. Lembro bem da cara de desespero dela quando o ônibus partiu." – Ana Lúcia Leitão, consultora na área de marketing.


"Foi a viagem mais inusitada de minha vida e, provavelmente, de todos que foram comigo. Eu era presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Comunicação da UERJ. Descobrimos que o pessoal da UFRJ tinha conseguido um ônibus para viajar ao Ceará, onde aconteceria o Enecom. Fiz contato com outras universidades e fomos até o Palácio Guanabara, aonde nos prometeram o segundo ônibus. Foi uma viagem insana, mas de grandes recordações. Em Petrolina, rolou uma partida de futebol 'histórica' em um campo de areia às margens do rio São Francisco, com um ônibus de cada lado delimitando o 'campo'. Devia ter uns 30 jogadores de cada lado. Tenho certeza de que nenhum de nós jamais se arrependeu de ter embarcado naqueles ônibus." – Rafael Casé, jornalista.


4 Responses so far.

  1. Unknown says:

    kkkkkkkkkkkk
    Estou aqui imaginando a garota entrando pela janela de um ônibus urbano e sendo puxada pelas pernas!
    Imagino até mãe e filha - uma, com cabelo cheio de laquê, óculos escuros, saltos quadrados, bolsa sacola; a outra, de cabelos lisos compridos, sem pentear, a cara limpa, calça jeans com a barra desgastada pelo rolês. Que fotografia! kkkkkkk
    A melhor história, pra mim. kkkkkkkkkkkkkk

  2. Unknown says:

    Meus pais não deixaram eu ir...rsrs...piores do que a mae da colega que entrou pela janela, mas foi. Sofri de saudades do meu namorado na época, vulgo Urubu, hoje Luiz Henriques Neto. Muito bom ler isso, entrei na máquina do tempo.

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